Viagem ao vale das camas encantadas na Suécia

vividus.jpg

postado em 16 de Agosto de 2016 14h16

Fui à fábrica da Hästens, em Köping, na Suécia, e participei do processo de produção. Conheci os segredos mais íntimos da Vividus, a famosa cama mais cara do mundo. Mas, melhor que isso, dormi duas noites numa delas. A parte boa foi que dormi como um anjo. A parte ruim foi que nunca mais vi a minha cama com os mesmos olhos. Que comece a poupança.

Gosto de dormir. É, talvez, aquilo que mais gosto de fazer, por muito desinteressante que isso possa me tornar. O sono é um componente muito importante da minha vida. A qualidade – ou ausência dele – do sono de uma noite, marca o meu dia seguinte. Por isso o tema me interessa. Investi num bom colchão. Li sobre a temperatura adequada para dormir. Gosto de comprar lençóis de algodão puro. São frescos e, quando lavados, antes da estreia, têm aquela sensação crispy que adoro. Tenho uma pulseira que monitoriza a qualidade do meu sono. Sei que não durmo tanto como deveria. Que as horas de sono profundo são menos que as de sono leve. E a minha almofada é a minha melhor amiga e conselheira.

Passamos mais de um terço das nossas vidas dormindo. E, felizmente, há gente que se preocupa com a qualidade do sono alheio. É o caso da Hästens, marca sueca de camas e colchões de luxo, fundada em 1852. São aquelas, de quadrados azuis e brancos, que toda a gente conhece por serem as mais caras do mundo.

Há muito tempo que venho acompanhando o percurso desta marca familiar. Já tinha escrito sobre as camas, sobre a história da marca, mas nunca tinha dormido numa delas. E, no trabalho, tenho esta perspectiva experimentalista: como se pode escrever com propriedade sobre algo que nunca experimentámos? Sobretudo se soubermos que a Hästens tem como missão mudar a forma como as pessoas encaram o sono e levá-las a investir em qualidade de vida. Uma cama de cada vez.

Foi assim que me propus a ir conhecer – em profundidade – aquilo que tem sido o motor da Hästens há mais de 160 anos: as camas, colchões, sobre-colchões (quase um pillow top) e acessórios que produzem em Köping, na Suécia. O itinerário previa dois dias na fábrica, conhecendo cada etapa de produção e, se possível, participar do processo; dormindo numa cama Hästens (um pequeno hotel em Köping tem uma Vividus, a cama topo marca, onde tive o privilégio de passar duas noites); e ainda uma passagem por Estocolmo, para visitar a nova loja, no centro, com um showroom de todas as camas que é possível ali comprar.

Na minha primeira visita à Suécia, em pleno Inverno, fui acompanhada por José Castillo, o Country Manager da Hästens para Espanha, Andorra e Portugal. Foi ele que, depois de uma noite bem dormida na enorme Vividus – em que pude alternar entre o lado macio e o lado firme –, me conduziu pelo manto branco das estradas cobertas de neve até à fábrica Hästens.

Os funcionários da Hästens vestem a camisa da empresa e têm boas razões para isso. São bem tratados. A gestão tem fortes preocupações com o bem-estar dos seus empregados. Age com transparência, partilhando com os funcionários os números do faturamento e premiando o mérito de todos.

Tratar uma cama por você

À entrada da fábrica, passamos – eu e José Castillo, o meu cicerone – por um corredor. À minha direita, a parede está forrada de molduras com a fotografia sorridente de cada empregado. Continuando, entramos na nossa primeira parada, uma sala com um cheiro especial. De campo? De erva? De bosta de cavalo? Faz sentido que cheire assim, pois é aqui que guardam a crina de cavalo, um dos ingredientes naturais utilizados na fabricação das camas e dos sobre-colchões Hästens, e que funciona como um ar-condicionado natural.

Dois funcionários da fábrica dividem-se entre os montes de crina e a balança. Sabem que para cada modelo de cama existe um peso específico de crina necessária. Cerca de dois quilos para cada lado do colchão, a não ser que se trate da Vividus, a tal onde dormi, que leva o dobro.

Uma a uma, as tranças de crina são desmanchadas e dobadas, como se fosse lã, até terem uma aparência fofa, tufada. É essa versão da crina que vai parar aos sobre-colchões, que se ajusta ao corpo e torna a cama ainda mais confortável.

Fui convidada a participar no processo de produção. Meti as mãos na massa... ou melhor, crina. E passei com distinção.

Fui convidada a participar do processo de produção. Meti as mãos na massa… ou melhor, crina. E passei com distinção.

Para cada sobre-colchão há cerca de 5 a 6 pessoas envolvidas. Reúnem-se à volta de uma mesa e massageiam a crina, para tirar bolotas, espalhá-la uniformemente, para evitar que tenha altos e baixos, que se tornam desconfortáveis mais tarde, para quem dorme lá em cima. Desta vez, a equipe teve um par de mãos extra para ajudar. Fui convidada a meter as mãos na massa – neste caso, na crina. Dei o meu melhor e, ao que consta, passei com distinção.

Os sobre-colchões são feitos numa espécie de teares. Há uma esquadria em madeira cheia de pregos afiados (é preciso ter cuidado, pois é muito fácil nos ferir), em cima e em baixo. Depois a tela, depois lã e algodão. No meio, a crina de cavalo, perfeitamente distribuída, para não criar zonas desconfortáveis. E repete-se o algodão, a lã, a tela e o tecido do forro. Alinhavadas todas as camadas entre si, vão a coser, em máquinas de costura tradicionais, muito antigas, daquelas com o carrinho de linhas à vista.

Enquanto amassava a crina, olhei em volta e só vi pessoas felizes, trabalhando com rapidez e eficiência, mas sempre sorrindo. Talvez contribua para isso todo o ambiente do espaço, pensado para ter luz natural, ser iluminado e arejado, ter espaços verdes lá fora – embora na Suécia se passe metade do ano na escuridão e os invernos sejam rigorosos e frios.

Hastens Handcrafting

Um mundo de detalhes

A Hästens tem cerca de dez modelos de cama – doze, se contarmos com as redondas. Aos meus olhos, salvo algumas exceções que se distinguem com facilidade, parecem todas iguais, devido ao uso, em permanência, do padrão azul quadriculado. Os dez modelos, dividem-se por três tipologias: o escandinavo; o continental e o articulado. A principal diferença entre elas é que a primeira tem o colchão integrado na base, numa só peça; a continental tem o colchão à parte. A articulada é… isso mesmo, é dividida em quatro partes e movimenta-se para se ajustar à posição desejada.

No caso das camas articuladas – a Lenoria e a Novoria –, elas têm entre si diferenças a nível da base, da qualidade da crina utilizada e da altura das molas. Toda a eletrônica é comprada de terceiros. “Não temos know-how, por isso preferimos ir buscá-la diretamente de quem o tem”, explica Castillo. Os três modelos de cama escandinava são a Marquis, a Excel e a Superia. Dentro da Superia, existe ainda a Superia Redonda, igual, apenas a forma muda. Já as continentais, os modelos mais pedidos em nível mundial, são cinco: Luxuria, Auroria, Proferia (também em versão redonda), 2000T e Vividus. Todos estes modelos são produzidos na fábrica de Köping, de acordo com as encomendas existentes. Não há estoque. Tudo o que é produzido já é vendido.

Explicado isto, entramos na área de colchões. Aqui o chão é de madeira e o espaço é mais amplo. Tem de ser, pois trabalham em linha. Há uma encomenda de um determinado número de um modelo de cama, e é apenas esse modelo que vai ser feito. O processo é fascinante. Nesta linha de montagem todos os componentes de uma cama têm uma ficha. Sabe-se sempre tudo – quando começa a ser feito, quando termina, para que país segue. Em cada embalagem segue uma ficha que explica tudo.

Cada consumidor decide na loja a firmeza que pretende. A de Estocolmo tem um showroom muito completo. A mais recente que a marca abriu em Portugal, no Porto, também tem um sleeping spa onde os clientes podem fazer o test-drive da cama, escolher as características que melhor se aplicam. No entanto, para os indecisos, a marca tem um guia que aconselha a firmeza, de acordo com o peso.

Para menos de 70 quilos, aconselha-se a versão macia, firme ou média, de acordo com a preferência. Acima dos 70 quilos, quem gosta de camas macias deverá optar pela firmeza média. Se preferir dormir em camas duras, pode escolher a extra firme. O preço não varia, seja qual for a firmeza escolhida.

À frente, na linha de montagem, duas pessoas entretêm-se a preencher de molas a base de uma cama Excel. Explicam em inglês que não há um número de molas médio previsto por colchão. O importante é que fique tudo preenchido. E os cantos são preenchidos com uma mola mais forte e uma proteção de linho grosso, para que não desabem, e não percam a forma.

Terminada a parte das molas, o colchão segue para uma máquina de pressão que vai espremer as molas de forma a ser possível colocar a capa no colchão, que em seguida é fechada com um tipo de ziper que só pode ser reaberto na fábrica. “Quem abrir perde a garantia, que é de 25 anos”, avisa Castillo.

Já com a capa colocada, o colchão fica no alto, entre duas paredes de acrílico transparente, com buracos estrategicamente colocados. Duas pessoas, uma de cada lado do colchão, seguem um guia para, com recurso a agulhas de tamanho gigantesco (30 centímetros, pelo menos), atravessar o colchão com linha e rematá-lo com uma borla de algodão que se ajusta assim que o colchão deixar de ser prensado. A ideia é fixar as molas e os restantes dos componentes – a crina de cavalo e o linho – no seu lugar, para não se deslocarem pelo colchão, com o tempo de utilização. Se é para durar 25 anos, tem de estar prefeito – o tempo todo.

Antes de soar a toque para o almoço, ainda temos tempo de subir ao primeiro andar para visitar a área dos tecidos. É ali, naquela sala cheia de estiradores altos, ocupada 100% por mulheres, que começa todo o processo. É ali que é feito o quebra-cabeças de corte, tudo em pedaços rigorosamente medidos. A dificuldade acrescida está no casamento entre os quadrados. Um trabalho desafiante.

Baby Bed

A um canto, um homem, o único naquele espaço, acaba os remates de um sobre-colchão muito pequeno. “É para um bebê”, esclarece o nosso guia. Tem o tamanho standard de um berço e, claro, os quadrados azuis e brancos da ordem.

Mas se tínhamos a ideia de que as camas Hästens têm de ser obrigatoriamente com quadrados azuis, podemos deixá-la de lado de hoje em diante. Há quadrados, mas também há tecidos lisos (ou com o quadriculado disfarçado pelo fato de o tecido ser monocromático) numa variedade de cores estonteante. Há um virginal todo branco, ou um trendy em preto integral. Há dourado, ou champanhe, como ali se chama –favorito nos mercados chinês e russo. Azul claro, marrom, cor-de-rosa, encarnado, verde... Nas estantes veem-se também algumas amostras do S12, o tecido mais antigo da casa – que também não tem quadrados.

Pausa para almoço. Na parede central do refeitório estão afixadas algumas folhas de papel A4 cheias de contas e números. “É o nosso faturamento de cada mês, atualizado dia a dia”, explicam-me. Como? “Sim, os trabalhadores sabem como está a correr o negócio. Conhecem os objetivos e trabalham em função deles. E ganham um extra, todos os meses, que depende do faturamento. É uma boa forma de envolver todas as pessoas na empresa, de fazer com que todos vistam a camisa e trabalhem pelo bem comum”. 

20140818_HASTENS_15095_vit

Tentei ficar acordada na Vividus. Falhei.

slogan da cama mais cara da Hästens é “Tente ficar acordado numa Vividus”. Eu tentei, juro que tentei, em nome do rigor jornalístico. Mas não consegui. Que cama é esta?

Uma pessoa faz planos. Leva um livro. O computador portátil. O frio e a escuridão que se sente na rua ajuda, puxa-nos para dentro de casa. Para cima da cama. Tive-a só para mim durante duas noites. Prometi que lhe tirava as medidas convenientemente logo na primeira noite, antes de conhecer todos os segredos dela. Mas, possivelmente por ter acordado muito cedo para a viagem, a Vividus levou a melhor ao fim de cinco minutos e o meu relato sobre a experiência de dormir numa Vividus resume-se a isso.

A bem da verdade – e da qualidade da cama – em ambas as noites dormi como um anjo. E acordei descansada, sem dores nas costas nem torcicolos, apenas indecisa sobre a firmeza de que mais gostei. Estou acostumada a camas duras. Dizem que é normal nos países do Sul, mais quentes. Mas a versão macia foi uma surpresa. Afundei-me nela, a cama abraçou-me como se fosse um ninho. Acho que foi a explicação para o apagão que se deu no meu cérebro naquelas duas noites.

Mas voltando ao trabalho… ao chegar à fábrica da Vividus, à porta fechada, com uma equipe de sete pessoas a trabalhar ali em exclusividade, percebi que a Vividus tem um lugar especial no coração desta fábrica.

As características técnicas da cama estão guardadas a sete chaves. Mesmo durante a minha visita, fui proibida de fotografar a área onde são produzidos aqueles mais de 60 mil euros de cama. “É uma cama especial. Tem as suas próprias ferramentas e tem uma equipe que é dedicada com exclusividade”, conta-me Jon Erik, o chefe da equipe, que já trabalha na Hästens há 29 anos.

Setting-2000T_Anniversia-0265b

Para fazer a Vividus, começa-se pelo estrado da cama (a base), feito em madeira de pinho e carvalho. Não se usam pregos, recorre-se à técnica de encaixe de carpintaria, que fica colada e tem a garantia de nunca se desmontar. Uma vez pronto, o estrado é coberto por um tecido guarda-pó, afixado com pequenos pregos. A seguir, começa a preencher-se o estrado com molas, segundo uma técnica antiga com que se construíam sofás. Cada mola é colocada à mão e depois costurada com um fio. Terminada esta etapa, a camada de molas é coberta com linho – que insonoriza e retira a eletricidade estática – para, em seguida, levar por cima um segundo sistema de molas, que podem ter entre 7 a dez centímetros. Volta a rematar com linho, leva crina de cavalo para respirar, e lã e algodão para finalizar, embebidos numa mistura antichamas, mas sem químicos.

É uma tarefa demorada, mas na oficina Vividus, o tempo é o que menos importa. Cada cama leva o tempo que precisar para ser concluída. Para quem liga a essas coisas da contabilidade, são entre 140 a 160 horas de trabalho.

Os pés podem ser escolhidos – aliás, na Vividus tudo pode ser personalizado. Há pés em alumínio ou em carvalho. Uma vez aplicados, é preciso esperar duas horas para que a cola seque. Até os pregos são postos de forma diferente. Não são pregados, o que deixaria marcas na madeira e no tecido. São colocados através da pressão.

Passamos então ao colchão. O sistema de molas – mais um – é integralmente forrado com linho. E a crina de cavalo entra duas vezes de cada lado do colchão. É tanta crina utilizada na Vividus – são 52 tranças – que, uma pessoa sozinha, leva 7 dias para separar à mão a crina necessária para apenas uma cama.

Entretanto, vai-se bordando o nome da cama no tecido escolhido para forrar e são precisos dois dias para costurar o colchão inteiro, antes de colocar o forro.

Também este é diferente. É mais espesso – tem de ser muito forte, para não arredondar nos cantos com o peso. Claro, os quadrados têm de bater certo, tanto de um lado como do outro, por isso é um trabalho que requer atenção, conhecimento – e algum desperdício de tecido. Com a Vividus é tudo mais minucioso. Pelo preço que se paga, tudo tem de estar perfeito.

(Reportagem publicada por Rita Ibérico Nogueira na edição nº130 da publicação portuguesa Fora de Série de 2015)